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Educação infantil e psicologia: para que brincar?1

Children education and psychology: playing for what?


Eulina da Rocha Lordelo*, I; Ana Maria Almeida Carvalho**, II
I Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia
II Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência



RESUMO
Discute-se o lugar da brincadeira no currículo da educação infantil. A partir da nova LDB, coloca-se a tarefa de construir, ou reconstruir, em alguns casos, propostas de atendimento que contemplem as necessidades da criança em desenvolvimento. A mudança constitui um problema face à tendência à aplicação, por analogia, de um modelo de instituição escolar a essa faixa etária, evidente na organização do ambiente e das atividades proporcionadas à criança. Questiona-se a visão da brincadeira como meio através do qual a criança vai atingir objetivos escolares, representando uma visão de infância apenas como promessa de futuro, sem importância para o presente. Propõe-se uma orientação para a educação infantil que privilegie um conceito de desenvolvimento como adaptação atual.
Palavras-chave: Educação infantil, Brincar, Desenvolvimento, Currículo.

ABSTRACT
This paper discusses the role of playing in the curriculum of early education. Following the new LDB (national orientations for Education), we have the task of constructing or reconstructing, in some cases, proposals for early childhood care that meet the developing child’s needs. The change is difficult due to the trend of applying, through analogy, a school model to early childhood education. This trend is evident in the environment organization and in the activities proposed to children. We argue against looking at playing as a vehicle through which the child will achieve schooling goals, representing a vision of childhood only as a promise for the future, disregarding the present. We propose instead an early education that privileges a concept of development as present adaptation.
Keywords: Early education, Play, Development, Curriculum.



Depois de décadas de lutas tentando pôr em evidência a necessidade e prioridade da criança pré-escolar, estamos agora no limiar de uma nova etapa. Nas décadas precedentes, os esforços estiveram concentrados na necessidade, no compromisso da sociedade com os direitos das famílias e das crianças, em retirar do atendimento à criança de zero a sete anos o caráter de assistência custodial e filantrópica, em uma trajetória já bem conhecida através das contribuições de estudiosos, políticos e movimentos sociais (Campos, 1989, Oliveira & Rossetti-Ferreira, 1986).
Estamos, agora, começando uma nova era no cuidado à criança. Temos uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação que reconhece a criança de zero a sete anos e o dever do Estado em prover educação a essas crianças; temos uma secretaria ministerial que elaborou e publicou referenciais curriculares nacionais para esse nível da educação fundamental. Então, já não é sem tempo a refleção sobre o nosso papel, o que nos solicitam e o que nós devemos e podemos executar.
A recente mudança de orientação do atendimento à criança de 0 a 6 anos da área de assistência social para a educação trará algumas importantes conseqüências, algumas das quais nos propomos a explorar aqui. Queremos esclarecer que esses comentários se baseiam em um contato extenso com creches nas cidades de Salvador, São Paulo e, em menor extensão, em outras cidades do Brasil, mas não são aplicáveis a todas as creches; na verdade, a evidência de que são representativas da média das instituições de educação infantil é assistemática e sujeita a deformações por viés de amostra. Isso, entretanto, não é decisivo para a discussão que trazemos aqui, de caráter mais conceitual e menos factual.
Possivelmente devido à novidade do assunto – o cuidado extensivo da criança fora da família – a sociedade não dispõe de modelos desenvolvidos especificamente para esse contexto. Assim, assistese à tendência à aplicação, por contágio, de um modelo de instituição escolar para essa faixa etária, evidenciada na organização do ambiente proporcionado à criança, em todos os seus aspectos: arquitetura, atividades, formação de pessoal, natureza dos papéis, interações, e até mesmo em dimensões simbólicas que permeiam as relações sociais.
Alguns poucos exemplos podem ilustrar essa afirmação. À parte as que funcionam como depósitos de crianças, na esmagadora maioria das instituições de educação infantil, os espaços em que as crianças ficam a maior parte do dia são organizados como salas de aula, geralmente com mesinhas e quatro cadeiras, possuindo, freqüentemente, quadros de giz; a maior parte das atividades da criança é de natureza acadêmica, envolvendo papel, lápis e tintas. A organização da rotina confere ao horário de brinquedo livre um lugar secundário, geralmente no primeiro e último horários do dia, antes do início e depois da conclusão das “verdadeiras” atividades educativas. Qual é o problema de pensar a instituição de educação infantil como escola? Na perspectiva da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman (1979), há mais de 30 anos, especialmente o do futurismo: nessa visão, a importância atribuída à infância é o fato de que ela prefigura o futuro, o verdadeiro alvo do desenvolvimento e dos esforços da educação. O que uma criança faz na creche não é considerado em função do seu bem-estar atual mas, sim, do que pode trazer para o futuro da criança, como melhor início na alfabetização e, em qualquer nível, um desempenho acadêmico mais elevado, o que resultaria em mais sucesso na vida como adulto.
Um exemplo emblemático dessa mentalidade pode ser visto no trecho abaixo:
De uma psicóloga e professora universitária para outra:
Mas você vai deixar seu filho fazer o pré-primário nessa escola? Você não quer que ele entre na faculdade?
A idéia de continuidade no desenvolvimento é antiga e persiste no presente, a despeito dos profundos questionamentos a que tem sido submetida, desde a virada da perspectiva de ciclo de vida, nos anos 70. Não há provas irrefutáveis de que os eventos do passado tenham papel causal no futuro do indivíduo, o que talvez justifique uma redução da preocupação com a vida escolar posterior da criança. Cada vez mais, o desenvolvimento é concebido como um processo aberto e indeterminado, com múltiplos caminhos possíveis a partir de qualquer ponto (Fogel, Lyra & Valsiner, 1997). Entretanto, nossas críticas ao currículo da educação infantil não dependem da adesão ou recusa ao postulado da continuidade do desenvolvimento. Embora acreditemos que o bem-estar presente da criança seja defensável por si próprio, pensamos que as práticas escolares vigentes na educação infantil hoje estão longe de desempenhar um papel benéfico ao desenvolvimento posterior da criança.
Mesmo em uma perspectiva de continuidade, não há justificativas para a escolarização da educação infantil. A essa desvalorização do bem-estar presente da criança em favor de metas futuras, soma-se uma concepção de desenvolvimento marcada pela idéia de um cronograma dirigido para metas sempre antecipadas. À guisa de metáfora, o desenvolvimento é visto como uma corrida cujo prêmio é a redução do tempo necessário para cumprir a tarefa. A expressão atraso, que tem um sentido mais ou menos preciso para o diagnóstico de perturbações severas e permanentes no desenvolvimento, foi levada para a área do desenvolvimento normal, gerando entre pais e educadores a idéia de que fazer algo mais cedo é bom para a criança.
Exemplos dessa ideologia podem ser vistos na área da chamada “educação de bebês”, uma recente mania que se espalha em certos círculos urbanos de alta classe média e que reflete escasso respeito pelos direitos da criança, conforme se observa na imprensa escrita de grande circulação:
“A construção do superbebê”
“No passado, acreditava-se que a criança só podia entrar na escola aos 5 anos. Hoje sabe-se que, quanto mais cedo, melhor. Os três primeiros anos .. são os mais importantes para o desenvolvimento cerebral...
“... em São Paulo, o Centro de Aprendizado e desenvolvimento, AeD importou um método espanhol, com a missão de ajudar os pais a desenvolver o potencial máximo dos filhos desde o nascimento...
“...no projeto chamado Superbebês... a maior parte é de recém-nascidos... Nesses cursos os bebês ...ouvem música clássica para desenvolver a inteligência auditiva... estimular o aprendizado de língua estrangeira... oferecer noções elementares de matemática...
...são estimulados a engatinhar, equilibrar-se, subir rampas... (para) desenvolver a capacidade motora...
...observam obras de arte para aprimorar a percepção de cores... têm brinquedos para desenvolver o senso tátil...
...com um ano começam a aprender uma segunda língua... poderão falá-la no futuro sem sotaque... (Veja, 1998, pp.31/33).
Um segundo mito, na análise de Thoman (1979), refere-se à ausência de uma concepção de desenvolvimento como um todo, em que as diversas competências são integradas. A escolarização da educação infantil toma o desenvolvimento cognitivo como alvo privilegiado e praticamente ignora sua relação com os demais aspectos.
A separação de funções entre os diversos profissionais da educação infantil exemplifica essa concepção. Embora as regulamentações sobre a educação infantil tenham fixado a formação de professor como o desejável para a área, é patente a divisão de trabalho existente nas creches entre professores, que “trabalham” competências e auxiliam o desenvolvimento, e os auxiliares ou qualquer outro nome pelo qual são conhecidos (pajens, atendentes, babás), encarregados de trocar fraldas, limpar narizes, dar banho, comida etc. Nessa divisão de trabalho, as pessoas de melhor formação se encarregam de cuidar do desenvolvimento cognitivo, não sendo necessárias para lidar com a criança em todos os seus aspectos, os quais, portanto, supostamente não requerem escolaridade mais elevada ou formação especializada.
Ora, a instrução é, certamente, muito importante, embora não necessariamente pelo domínio de conteúdos específicos e técnicas particulares aplicáveis a esse nível de atendimento à criança, o que só é compreensível quando se aceita que o trabalho do adulto seja prioritariamente visto como ensino. A instrução, no entanto, não é a única característica importante, talvez nem mesmo a mais importante. Sabe-se que o desenvolvimento é profundamente afetado pela qualidade da relação entre a criança e o adulto, que, usual, mas não exclusivamente, envolve a mãe. Dificuldades no ajustamento da personalidade do adulto, como hostilidade, depressão, inconsistência, entre outras, são características comumente relacionadas à qualidade das adaptações alcançadas pela criança nas suas trajetórias desenvolvimentais (Schaffer, 1977, Papousek & Papousek, 1984, 1989, Isabella & Belsky, 1991). Essas dificuldades não são, evidentemente, prerrogativas de pessoas com baixa instrução.
Um caso exemplar pode ilustrar a obsessão da educação infantil com as habilidades acadêmicas: em uma visita a creche de reconhecida boa qualidade, com razão adulto-criança acima das recomendações, empenhada em seguir as orientações do MEC, pudemos presenciar uma cena representativa da concepção de creche como escola. Entre outras decisões, a instituição mostrava um grande comprometimento com o estímulo ao desenvolvimento da criança. No berçário, além das pessoas que cuidavam regularmente das necessidades corriqueiras das crianças, havia uma professora com a função específica de estimulação, chamada, apropriadamente, “a estimuladora”. Quando entramos na sala, vimos duas crianças (de um ano e um mês e um ano e três meses) sentadas a uma pequena mesa, segurando pincel atômico e riscando um papel. Uma das crianças parou o “trabalho” e olhou para nós. A estimuladora se abaixou, pegou a mão da criança e guiou-a para riscar o papel.
Esse exemplo revela o conceito pobre de estimulação praticado, que privilegia estímulos materiais e atividades, ignorando completamente a dimensão de responsividade do ambiente, inclusive o social. Schaffer (1977) aponta o fracasso da hipótese de estimulação como determinante do desenvolvimento, a partir da análise de diversos estudos na literatura. Para ele, a idéia de fornecer estimulação à criança “envolve experiências arbitrariamente impostas que podem não estar relacionadas à habilidade da criança de assimilá-las” (p. 43). Em seu lugar, propõe uma concepção de socialização inicial em que tanto o adulto quanto a criança estão envolvidos e em que a quantidade, o tipo e o timing da estimulação estejam relacionados à organização psicológica da criança (SCHAFFER, 1977, 1992).
De outro lado, o sócio-interacionismo, especialmente na concepção atribuída a Vygotsky, tem sido processado de uma forma peculiar em alguns meios educacionais. Alguns aspectos da obra de Vygotsky têm tido um impacto significativo no campo da educação. Entre esses, van der Veer e Valsiner (1995) destacam três princípios ou hipóteses: a primeira delas é a proposição vygotskyana de que os processos cognitivos são construídos num meio histórico-cultural e mediados pelos agentes sociais que interagem com os indivíduos; a segunda, estreitamente ligada à primeira, é que o desenvolvimento da criança difere essencialmente segundo ela freqüente ou não a escola, e, finalmente, o terceiro ponto a influenciar a educação atual diz respeito ao papel decisivo da “zona de desenvolvimento proximal”, o lugar privilegiado de ação do educador. Essas hipóteses, de grande importância para a Psicologia atual, foram geradas no contexto da construção de uma sociedade socialista, com sua preocupação com a educação e a adoção da premissa do materialismo histórico de subordinação das idéias às condições materiais de existência. Embora a preocupação final de Vygotsky, no entanto, fosse a educação das massas, seus estudos empíricos foram realizados (e muitas das suas hipóteses não chegaram a ser testadas) como experimentações limitadas, sem maior generalidade, sendo que apenas uma parte de seus resultados se acha disponível em publicações.
A “descoberta” de Vygotsky pelo mundo ocidental trouxe para a Psicologia um novo ritmo de desenvolvimento, como se entrevê no aparecimento de uma psicologia histórico-cultural, nos avanços do campo dos estudos sobre cognição, entre outros. Conceitos como “participação guiada”, de Rogoff (1990), têm sido acrescentados ao corpo teórico da Psicologia como mecanismos explicativos do desenvolvimento.
Como em qualquer teoria psicológica, entretanto, há um hiato entre teoria e aplicações. Em primeiro lugar, as teorias científicas são construídas, em geral, para explicar aspectos limitados de um campo, mas as ações humanas, como a educação, lidam com situações globais. Fatos e leis científicas sobre desenvolvimento cognitivo, por exemplo, não podem orientar ações educativas diretamente, uma vez que o sujeito do conhecimento é um todo e compreende motivações, emoções e contexto, todas essas instâncias interligadas de forma desconhecida. Derivar uma pedagogia de uma teoria sobre aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, portanto, é uma tarefa independente da elaboração dessa teoria, que requer investimento em pesquisa, experimentação e avaliação em ambientes naturais e controlados.
As práticas pedagógicas brasileiras supostamente apoiadas no sócio-interacionismo enfatizam fortemente o papel do professor. Freqüentemente, as orientações fornecidas ao professor, ao menos aquelas efetivamente praticadas, parecem assumir que a criança nada pode aprender que não seja explicitado e orientado pelo professor, havendo pouco reconhecimento ou preocupação com o que a criança aprende através do que é ensinado e, principalmente, através de suas ações, independentemente de ter recebido instruções para executá-las. Deve-se ressaltar que um dos aspectos essenciais do construtivismo, de qualquer construtivismo, é a proposição de que toda a aprendizagem e todo o conhecimento são governados por processos tácitos e abstratos, que prevalecem sobre o explícito e o concreto (Mahoney, 1998). Então, a integração de novas experiências aos esquemas cognitivos disponíveis ocorre independentemente de o professor fazer essas ligações, ou seja, toda a preocupação de relacionar experiências pessoais a conceitos, de contextualizar os conhecimentos em relação ao ambiente sócio-histórico parece-nos, de certo modo, repousar no velho mito da criança como página em branco, apesar de toda a insistência discursiva na crença sobre a criança como sujeito do seu desenvolvimento, como organismo ativo na construção do seu conhecimento. Em suma, parece haver um terrível hiato entre as teorias sobre o desenvolvimento e a pedagogia derivada.
O mesmo problema ocorre no que diz respeito aos processos de socialização, da aprendizagem de normas de conduta e valores. A preocupação explícita dos educadores com esses aspectos da formação traduz-se na inclusão de conteúdos relativos à vida social, que devem ser “passados” para a criança, ignorando-se o que, de fato, ela aprende a cada momento através das suas experiências concretas. Quando a criança é repreendida por molhar as fraldas ela, certamente, aprende que esse comportamento será punido e, aos poucos, deixará de fazê-lo mas ela também aprende, entre outras coisas, sobre seu próprio poder e o do outro, sobre o valor do seu corpo e seus produtos e sobre causalidade e controle.

O Lugar da Brincadeira na Educação Infantil
Assim, uma vez situados os quadros de referência amplos nos quais se apoiam as políticas da educação infantil, passemos a avaliar especificamente o lugar da brincadeira na educação infantil. Também nesse caso, devemos afastar as instituições que não têm qualquer pretensão educacional, representando soluções improvisadas, às vezes desesperadas, de guarda da criança durante os períodos do dia em que a mãe está trabalhando, e concentrar nossa atenção naquelas que estão preocupadas em educar a criança e que têm recursos suficientes para fornecer serviços além da alimentação: materiais acadêmicos, pessoal qualificado, espaço planejado, entre outros. No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (Brasil/MEC, 1998), a brincadeira aparece como um importante componente da educação infantil, mas como uma ferramenta para a aprendizagem; de fato, o item brincar é um tópico do item maior “aprendizagem”, e vem no mesmo nível que imitação, oposição, linguagem e imagem corporal; além disso, restringe-se à brincadeira de faz-deconta, e a prioriza injustificadamente, ignorando as inúmeras modalidades de brincadeiras que precedem o surgimento do jogo simbólico.
Esse enquadre utilitarista da brincadeira na educação infantil vem sendo discutido na literatura, sendo apontadas as limitações e/ou distorções dessa concepção, entre as quais a ausência de reconhecimento do caráter auto-motivado do brincar, a crença na necessidade de orientar a brincadeira em certas direções e não em outras, e as implicações dessas concepções para a vida da criança, bem como os impactos no seu desenvolvimento futuro.
O que significa dizer que o brincar (bem como diversas outras atividades) é auto-motivado? A pergunta requer uma digressão sobre um tema clássico da Psicologia, freqüentemente ignorado em estudos mais recentes em Psicologia do Desenvolvimento: motivação.
Deci e Ryan (1985) sintetizam as controvérsias sobre bases motivacionais do comportamento em dois modelos, por sua vez baseados em dois enfoques epistemológicos diferenciados: o mecanicista e o organísmico. O enfoque mecanicista pressupõe um organismo passivo, que só é ativado ou energizado a partir de estimulação externa, ao passo que o modelo organísmico pressupõe um organismo ativo e auto-determinado. Desses enfoques, resultam dois modelos motivacionais distintos: de um lado, as teorias de impulso, que só admitem motivações endógenas determinadas por déficit ou distúrbios do equilíbrio orgânico – por exemplo, fome, sede, dor, sexo – que ativariam ações no sentido de restabelecer o equilíbrio; de outro, o modelo de motivações intrínsecas, que pressupõe um sistema nervoso dotado de atividade própria, capaz de gerar energia para ações não motivadas por déficit ou distúrbio de equilíbrio, ações que não cessam a partir de saciação ou reequilíbrio – por exemplo, exploração, manipulação, ludicidade. Desse último modelo, decorrem os conceitos cognitivos de níveis ótimos de ativação e de atenção: os organismos estariam preparados para novidade, complexidade, desafio, incongruência, mas dentro de âmbitos delimitados, capazes de ativar o comportamento sem desorganizálo; no plano afetivo, decorrem as noções de que seres humanos teriam necessidade de interações livres e efetivas com o ambiente, nas quais estariam envolvidos sentimentos de prazer e de interesse, ou seja, que envolveriam recompensas intrínsecas à própria atividade; seriam dotados, ainda, de curiosidade e de desejo de eficácia ou competência na manipulação do ambiente. Esses conceitos permitem uma definição de auto-determinação como a experiência de liberdade na iniciação e controle do próprio comportamento.
O modelo de motivação intrínseca pressupõe, ainda, que o comportamento intrinsecamente motivado pode ser inibido se for submetido a controle externo (motivação extrínseca, ou seja, fazer algo por um motivo que não tem a ver com a própria atividade ou que não é auto-determinado). Esse pressuposto tem sido amplamente confirmado por pesquisas empíricas, que dão suporte à noção de organismo ativo e auto-determinado: por exemplo, crianças que receberam balas para brincar em balanços abandonam essa atividade temporariamente quando deixam de receber a recompensa extrínseca (Gomide & Ades, 1989).
A partir desse modelo, brincar, movimentar-se, interagir com parceiros são ações intrinsecamente motivadas no ser humano, e a criança é concebida como um ser ativo e auto-determinado, o que implica reconhecer sua competência e seu direito a condições propiciadoras de seus comportamento intrinsecamente motivados – mas nunca sua obrigação de desempenhar esses comportamentos, o que seria incongruente com a própria noção de motivação intrínseca. O modelo permite ainda indicar o que são condições propiciadoras: novidade e diversidade dentro de um grau ótimo de desafio e de incongruência, em condições ótimas de atenção e interesse, ausência de pressão por motivações extrínsecas (expectativas de desempenho, recompensas por desempenho segundo critérios externos), capazes de inibir o comportamento intrinsecamente motivado possibilidade de experienciar auto-determinação. Changchum e Dianwu (1993) defendem o direito da criança pré-escolar ao brinquedo e condenam os esforços para “desenvolver” a inteligência da criança através de programas de treinamento. Acreditam que o brinquedo livre tem um valor educacional, devendo ser o papel do professor o de ajudar a criança a realizar o brinquedo de acordo com seus desejos e a criar e descobrir coisas novas.
Quanto ao impacto dos programas sobre o desenvolvimento cognitivo, Sylva (1993), revendo estudos sobre efeitos da pré-escola no desempenho escolar da criança, reporta que, em termos de ganhos cognitivos, as diferenças entre grupos com diferentes experiências tendem a desaparecer em torno de oito a nove anos. Apenas em relação às diferenças em medidas não-acadêmicas, como compromisso com a escola, sucesso no trabalho e comportamento criminal, parece haver associação com as experiências de pré-escola, sendo os resultados relacionados especificamente à natureza dos currículos adotados e à qualidade dos programas.
Passaremos ao que consideramos um exercício de pensar o currículo da educação infantil da perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento. Não formulamos essas proposições como propostas práticas porque elas não foram testadas. Cremos que seria melhor tratálas como hipóteses: o que aconteceria para a criança se:
O espaço da educação infantil fosse organizado como um parque? Ou como uma casa? Ou como um grupo de escoteiros/bandeirantes? Ou como uma cooperativa de trabalho? Ou como uma comunidade política? Ou como grupo de crescimento pessoal?
O objetivo dessas perguntas é trazer à nossa consideração as implicações derivadas da adoção de um modelo particular para a educação infantil: em cada caso, são enfatizados caminhos desenvolvimentais diferenciados, como o trabalho, num caso, ou relações e vínculos, no outro, ou formação de valores, ou obediência, e assim por diante, em cada um deles.
De fato, como descrito na literatura, em vários países do mundo a creche não é concebida como uma escola. Observe-se, por exemplo, a descrição de uma creche típica na Suécia, feita por Gunnarsson (1994). Apenas a descrição do espaço já é suficiente para marcar diferenças essenciais nas concepções de creche: a área interna para um grupo de 16 crianças é composta por cinco salas, que as crianças podem utilizar livremente, uma para brincar de casinha, um espaço com almofadas, livros e um aquário, uma sala de carpintaria, um salão de brincar para atividades que envolvem movimentos amplos e uma sala com mesas e cadeiras, onde as crianças fazem as refeições, jogam e armam quebra-cabeças e preparam algumas refeições (o autor menciona especificamente que “assam bolinhos”). A organização dos grupos não obedece ao critério de faixas etárias, o que permite a convivência de crianças de idades diferentes e as experiências peculiares que essa convivência propicia (LORDELO & CARVALHO, 1989, 1999). O currículo enfatiza o contato e o respeito à natureza, a identidade cultural e a interação com a sociedade.
Na Noruega, a formação de educadores privilegia essas mesmas dimensões, incluindo, além de Psicologia do Desenvolvimento e de Pedagogia, noções de Sociologia e de Filosofia relevantes para esse currículo (LÆKKEN, 2001).
De outro lado, a descrição da Escola “Bank Street”, nos Estados Unidos, feita por Oliveira (1994), evidencia sua aproximação com um modelo escolar, mas com uma escola cujos objetivos e estratégias valorizam intensamente aspectos como identidade, auto-estima, auto-controle, autonomia e expressão emocional.
Também na Itália, país em que o atendimento à criança pequena tem sido visto como muito satisfatório, os currículos de educação infantil são marcados por uma enfática orientação não escolar (GHEDINI, 1994, FARIA, 1994).
Sustentamos que a escola não é o único e, provavelmente, não é o melhor modelo em que a instituição de educação infantil pode realizar uma ancoragem em busca de sua própria identidade. A simples enumeração de possibilidades de modelos nos alerta para o caráter perigosamente redutor da experiência de educação infantil que se está gestando nas políticas públicas.
Pode-se acrescentar a isso a consideração das deficiências de nossos modelos atuais de escola: quantas crianças em idade escolar estudam por prazer ou por interesse, e não controladas por nota? Quanto da motivação característicamente humana pela busca do conhecimento sobrevive às nossas escolas - das piores às melhores? Quanto dessa motivação sobrevive até em nós, professores, sob as pressões de produção e avaliação? Será que vamos cometer a proeza de conseguir que um dia as crianças também brinquem só porque, como, onde e quando se espera que elas brinquem?
Se tomarmos efetivamente por base o modelo de auto-determinação, talvez essas conseqüências não sejam tão graves ou irreversíveis, pelo menos em alguns casos. Conta-se que Einstein foi um péssimo aluno; talvez isso queira dizer que sua motivação intrínseca sobreviveu à escola. Talvez a ludicidade humana sobreviva à inserção do brincar na pré-escola como currículo obrigatório e como atividade da qual se esperam resultados mensuráveis em termos de desenvolvimento.

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* Doutora em Psicologia. Pesquisadora do CNPq. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia.
** Livre docente em Psicologia. Pesquisadora do CNPq. Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 O presente artigo tem como base apresentações realizadas em simpósios do I e II Congresso Norte-Nordeste de Psicologia.   





INFÂNCIA, EXPERIÊNCIA, LINGUAGEM E BRINQUEDO



Glacy Q. de Roure – PUC-Goiás

Infância, experiência, linguagem e brinquedo
É possível observar uma diversidade de significados e valores atribuídos à
infância, a partir dos quais a criança moderna assume seu lugar e função na família, na
escola e na sociedade. Com a produção do sentimento moderno de infância desde o séc.
XVII, a história acentua a sua dimensão escolar que é transposta ao campo social,
dimensão que a enquadra, dá significação e interpretação. O campo social também
define um tempo para essa infância, que é justamente a escolarização obrigatória.
(KUPFER, 2000).
É sem dúvida em Rousseau (1712-1778) que podemos buscar o ideal de criança
feliz e inocente presente no discurso pedagógico. Segundo ele, a criança é um ser
singular a espera de orientação, carinho e formação. É preciso escutar a voz da natureza
na criança e respeitar seu nível de desenvolvimento determinado pela maturação natural
das faculdades infantis. Deve-se ensinar a criança a viver com felicidade, virtude e
simplicidade. É a partir da obra Emilio (1992) que temos como conseqüência uma
pedagogia do respeito à condição infantil, da celebração de sua naturalidade, de sua
autenticidade e especificidade, e de sua inocência. Para Gagnebin (2005, p.178), na obra
de Rousseau, ”trata-se, pois, de assegurar na infância o lugar privilegiado de uma
felicidade e de uma proximidade da natureza que o adulto tem por missão sagrada não
só reconhecer e defender, mas também reencontrar como fundamento íntimo de si
mesmo.” Proposições que ao desconsiderarem a dimensão traumática da infância,
podem vir a silenciar na criança o sofrimento e a angústia que marcam desde o advento
de seu nascimento a experiência do (des)encontro com a demanda e o desejo do Outro.
Lembro que a psicologia da criança (teorias da aprendizagem, do
desenvolvimento e do condicionamento) aparece em meados do séc. XIX e dá
prosseguimento à empresa de objetivação iniciada por Rousseau: desconsidera seu
estatuto sexual, isola o período do desenvolvimento em que a criança não fala e
assevera que a relação desta com a linguagem, a ser regulada de modo lógico pela
maturação, tem como pressuposto uma necessária comunicação com o outro.
Concebida em sua consistência imaginária a criança é classificada e
categorizada, e quando seu comportamento não pode ser devidamente interpretado, é
mais uma vez preenchido com significados já previstos. Procedimento que ao visar um
enquadramento no escolar e, portanto, uma certa “normalização”, acaba por
comprometer ou mesmo obstaculizar o reconhecimento de significantes ditos
“problemáticos”, mas que são fundamentais à inscrição da criança às redes da
sexuação, identificação e filiação. Afinal, tudo vai girar em função da maneira como a
criança é capturada no Outro.
No entanto, se no campo social a criança assume o lugar de “criança escolar”,
posição que lhe atribui um lugar, produz sua inserção e lhe dá identidade, também na
família é possível observar os efeitos de uma discursividade própria ao ideal moderno
de infância proposta por Rousseau. Amada e concebida como espelho de uma
felicidade possível, não lhe resta alternativa senão corresponder aos sonhos e
expectativas de seus pais (e dos pais de seus pais) e se apresentar como ser afetuoso,
alegre, livre, verdadeiro, lúdico, solidário, inteligente e promissor. Enfim, princípios
legados por Rousseau e que ainda hoje significam o nosso ideal de criança.
Ao situar a infância em nosso tempo, Calligaris (1996, p.220) observa que em
uma sociedade tradicional o amor pelas crianças é incondicional, uma vez que são
amadas como garantias e apostas da reprodução social, como descendentes. Já em uma
sociedade narcísica como a nossa, o amor, ao contrário, impõe condições. Nesse
contexto, uma criança que, por razões reais, não corresponda aos nossos ideais, não é
mais nada. “Seu corpo, desinvestido narcisicamente, se oferece ao sexo; sua morte não
nos afeta, pois, de qualquer forma, ela não poderia mesmo, realmente, ser o espelho
miniaturizado de nossa felicidade.”
Isto posto, como pensar a dimensão da infância em um tempo marcado
pelo narcisismo e pelo consumo, tempo em que a criança, que não deixa de ser
“escolar”, é ao mesmo tempo idealizada e objetalizada? Para nos ocupar deste tema,
utilizaremos os conceitos de experiência e linguagem, geralmente concebidos pelos
estudiosos da educação como sendo de fundamental importância na transformação do
infans, aquele que não detém a fala, em criança escolar.
É como ouvirmos no discurso pedagógico a importância da relação
experiência, linguagem e aprendizagem. John Dewey (1859-1952) e Jean Piaget (1896-
1980), ambos, filosofo e psicólogo, são conhecidas referências que afirmam, cada um
a seu modo, a importância da experiência no processo educativo, procedimento seguro
de se chegar ao conhecimento. Para o primeiro, o processo educativo demanda a
comprovação científica e a tradução das impressões sensíveis vividas na experiência
comum em experimentos que primam pela exatidão de determinações quantitativas. De
nada adianta para a educação uma experiência que não faça uso da razão e da reflexão
consciente (1976). Calculada e quantificada, a experiência deve ser traduzida em
conhecimento.
Entretanto, não é só na escola que a criança experiencia o mundo que a
cerca. Desde o momento em que acorda até o anoitecer, uma criança, bem como um
jovem ou um adulto, vive inúmeros momentos de experiências. Sabemos muito bem
que em tempos modernos a infância tem tornado-se cada vez mais uma disputada fatia
de mercado para a indústria do brinquedo e do entretenimento. As crianças são
ofertados os brinquedos de ultima geração - bonecas que falam, choram, fazem xixi e
andam; carros que batem, voam e transformam-se em robôs - e nesse sentido parecem
ser submetidos às mais diversas situações experienciais. Também se amplia a oferta de
jogos de natureza virtual em função de sua potência em promover experiências
sensoriais e de aprendizagem nunca antes imaginadas. Pais e professores concordam e
compartilham a idéia de que as crianças de hoje são mais espertas com as máquinas e,
portanto, dominam o espaço virtual com mais lógica e destreza que eles próprios.
Mas se assim o é, o que significa a estranha afirmação de Walter Benjamim
(1986a) que já em 1933 diagnosticara na época moderna “uma pobreza de experiência”?
Pode-se argumentar que Benjamim não se remetia à criança, mas ao homem adulto face
à experiência da guerra quase impossível de ser relatada. Vivências reveladoras de uma
incapacidade de fazer uso da palavra, de se produzir experiências comunicáveis e
partilháveis. Contudo, esse não me parece ser o caso. Giorgio Agamben (2005),
filosofo e leitor da obra de Benjamim, observa em seu trabalho: “Infância e história:
ensaio sobre a destruição da experiênciai”:
[...] nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não
é de modo algum necessária , que a pacífica existência cotidiana em uma cidade
grande é, para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem
contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência:
[...] O homem moderno volta para casa a noitinha extenuado por uma mixórdia
de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos,agradáveis ou atrozes –
entretanto nenhum desse se tornou experiência.” (2005, p. 22)
Mas se esse processo ocorre tanto com homens e mulheres, jovens e
adultos, neste trabalho penso a relação criança e experiência, uma vez que a infância é
geralmente concebida como espaço e tempo de se vivenciar experiências. Será possível
pensar que os acontecimentos vividos por uma criança ao brincar já não possam se
traduzir em experiências compartilháveis? Será possível supor que justamente na
infância, a palavra falte e com ela a imaginação e a criatividade, e isso justamente no
momento em que os brinquedos e brincadeiras portam necessariamente a marca do
desejo e da fantasia? Mas afinal, para Benjamim (1986a; 1986b ) e Agamben
(2005), o que faz de um acontecimento uma experiência? Será que uma experiência
deverá ser sempre calculável e quantificada, procedimento tão ressaltado por Dewey no
processo educacional?
Experiência e memória
Experiência, segundo Benjamim (1986a;1986b), inscreve-se numa
temporalidade comum a varias gerações e supõe uma tradição a ser compartilhada e
retomada na continuidade de uma palavra a ser transmitida. É na atividade da narrativa
que o sujeito pode retomar a experiência do tempo e, assim, lidar com o desconhecido
respeitando a irredutibilidade do passado e a imprevisibilidade do presente. É por isso
mesmo que o declínio da experiência compartilhada e fim da narrativa, tão ressaltados
por Benjamin, são processos considerados como inseparáveis. Somente a partir dessa
articulação será possível retomar o passado e estabelecer uma nova relação com a vida,
a morte e a finitude. Para que uma vivência se transforme em experiência é preciso que
a palavra a atravesse e a submeta a significantes não ordenados por uma linearidade
exclusiva, dinâmica que submete a soberania do sujeito consciente aos jogos infinitos
do lembrar incluindo as dimensões do recalcado e do esquecido. Trata-se do
esquecimento como condição de memória (GAGNEBIN, 2005 ).
Quanto as elaborações de Agamben (2005) sobre o conceito de experiência, elas dão
continuidade ao programa benjaminiano e assinalam o fato de que em sua busca pela
certeza, a ciência moderna abole a separação entre experiência e ciência, e unifica
experiência e conhecimentoii. Contudo, para este autor “experiência é incompatível
com a certeza, e uma experiência que se torna calculável e certa perde imediatamente
sua autoridade” (idem, p.26). Isso porque “a experiência tem o seu necessário correlato
não no conhecimento, mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto, e hoje ninguém
mais parece dispor de autoridade para garantir uma experiência (idem, p. 23)”.
Mas se a experiência pensada por Benjamim e retomada por Agamben
apresenta como fundamento a dialética esquecimento, lembrança e memória e tem na
palavra a sua possibilidade, penso no quanto esta se aproxima da experiência a ser
vivida na clínica psicanalítica. Afinal, o que faz um sujeito em analise a não ser
lembrar, elaborar e reelaborar lembranças vividas no decorrer da vida e com elas
sentimentos de mal estar, de desamparo, de amor, de ódio, de paixão e de desejo que
não puderam ser ditos ou mesmo simbolizados? É pela via da palavra, que aí não se
confunde com verdade, que um sujeito poderá bordejar o real traumático e assim
produzir ficções sobre o vivido, de modo a acessar algo de sua verdade.
Assim como para Benjamim ou Agamben, também para a psicanálise, uma
experiência não é pensada como sendo da ordem do conhecimento e da certeza, o que
se tem é uma relação entre experiência e palavra. O objetivo de uma experiência não
necessariamente deve se reportar a um conteúdo ou conhecimento a ser adquirido, ou
uma verdade a ser encontrada, mas a possibilidade de se haver com aquilo que não
pode ser pensado e sequer simbolizado, e assim ousar em itinerários sem alvo, plenos
de significantes insólitos e ilógicos, mas que podem vir a retirar o sujeito de uma
repetição infinita.
Somente fazendo uso da palavra será possível ao sujeito confrontar-se com o real
traumático e se implicar no já dito que o oblitera, para só então caminhar na direção de
um “para além ” . É preciso passar da língua ao discurso, afirma Agamben (2005)iii. É
preciso fazer do encontro com o real – encontro sempre faltoso e fora do campo da
representação (LACAN, 1988) - algo a ser simbolizado, assim será possível fazer
desse acontecimento uma experiência .
Face a tais observações, como podemos recolocar a articulação linguagem e
experiência na infância, agora tomando como lugar de análise as elaborações de
Benjamin e Agamben e a psicanálise ? Para pensar tal relação nada melhor que o
brinquedo, pois seja ele advindo de elementos da natureza, pedra, água e terra, seja ele
fabricado com pedaços de madeira ou de tecido, seja ele industrializado, é ao redor do
brinquedo que uma criança cresce e experiencia o mundo que a cerca. É funcionando
como testemunha, que o brinquedo pode possibilitar à criança um certo endereçamento
que o coloca no lugar do outro a ser incluído numa possível trama a ser (de)cifrada.
Momento em que ao ser revestido pela palavra, possibilita à criança, face a vivência
traumática de um “não saber”, incluir o recalcado e o esquecido e assim dar lugar a
um “suposto sabido”.
O brinquedo na história
Em seu trabalho História do brinquedo e dos jogos (2002), Michel Manson
destaca que durante muito tempo o brinquedo fez parte da vida cotidiana e significou
um elemento que ligava pais e filhos. Já na antiguidade, a criança possuía um legue de
brinquedos e de jogos que a acompanhavam no decorrer da vida: nozes, ossinhos, bolas,
piões, arcos, piorras, ioiôs, carinhos e bonecas de osso, marfim ou terracota. Se os
primeiros eram elementos retirados da natureza, nos demais pode-se observar a
presença dos artesãos em sua confecção. Nas buscas arqueológicas foram encontradas
aproximadamente quinhentas bonecas datando do séc. V a.C ao século IV d.C, sendo
que algumas apresentavam pés e braços articulados. Brinquedos de transporte,
locomoção e destreza eram comuns de serem encontrados e até mesmo comercializados.
Mesmo considerados como frívolos, sem qualquer utilidade, o brinquedo sempre foi
reconhecido como objeto capaz de provocar o prazer e a satisfação de uma criança.
Ainda que o “brinquedo” e o jogo tenham funcionado no decorrer da história
como elemento integrador da vida cotidiana, com a pesquisa realizada por Manson,
observamos que preocupações sobre a sua importância no desenvolvimento da moral e
da personalidade infantil, ou sua utilidade no ensino dos conteúdos, sempre se fizeram
presentes no debate pedagógico. Duas concepções sobre a importância dos brinquedos
e dos jogos no processo educacional já dividiam os pedagogos em dois grandes
grupos: de um lado o brinquedo era concebido como objeto frívolo, e do outro como
útil à educação. Discussões que se acirram por volta dos séculos XVII e XVIII, e que
a partir do séc. XIX são definitivamente incorporadas no sistema escolar, com
prioridade para o reconhecimento dos jogos e brinquedos como instrumentos
facilitadores da aprendizagem e do desenvolvimento infantil.
Já para o sociólogo Gilles Brougere (1995), por encontrar-se inserido em um
determinado sistema econômico, social e cultural, o brinquedo pode ser concebido
como suporte de determinadas funções, e dentre elas, um dos modos de se inscrever
simbolicamente a criança no mundo adulto. Ao discutir a importância do brinquedo
afirma que ao manipulá-lo a criança é convocada por ele a interpretar e assumir algumas
das significações culturais ( e não outras) necessárias ao seu ingresso ao mundo do
adulto “A manipulação transforma ou anula as significações anteriores. [...] Trata-se
sobretudo de uma confrontação da qual a criança conserva determinadas significações,
eliminando outras para substituí-las por novas significações.” (1995, p. 48)
Mas se o brinquedo pode ser concebido tanto como instrumento educativo, como
lugar de representação e simbolização, conforme apontei anteriormente, é à luz das
elaborações freudianas e das reflexões propostas por Benjamim e Agamben que, neste
trabalho, concebo-o como momento de experiência e que no processo de constituição
subjetiva pode se apresentar como testemunho precioso de um momento lógico de
estruturação do sujeito-criança. Considero ainda que a criança se serve do brincar, da
diversidade da produção lúdica, como um instrumento lógico (e não didático, de
aprendizado sobre a realidade que vive) através do qual pode simbolizar a
(im)possibilidade de situar-se subjetivamente na cena familiar, e de encontrar seu lugar
no desejo dos pais . Atividade reveladora de seu impasse em torno da passagem da
apreensão fálica da relação com a mãe à apreensão das relações com o conjunto do casal
parental. Penso ainda que o brincar na infância é atravessado por duas importantes
formalizações: as teorias sexuais infantis e a construção da fantasia. Formalizações
marcadas pelo traumático e pela angústia que o acompanha, isto é, pelo real do gozo
que retorna sob a forma de repetição.
Inacabadas, distorcidas, repetidas,como verificamos em toda análise, elas [as
teorias sexuais infantis e a construção da fantasia ] caracterizam na
montagem o que é propriamente infantil da criança no adulto. As teorias
sexuais evidenciam a necessidade que a criança tem de produzir saber, ela
inventa respostas para os problemas que se colocam . Depara-se com cenas e
situações que desconhece e para as quais deve dar um sentido, incluí-las na
experiência, nomeá-las com sua palavra. A criança tropeça numa questão
crucial, ou seja, o gozo da mãe. Na verdade ela não solicita com seus “por
quês”, “mas” e “se” , um saber sexual e sim, a resposta sobre o gozo do qual
é ou não efeito. A fantasia é construída com o que resta da operação lógica
entre a criança e o Outro, operação que a destaca e representa em razão de
sua perda (objeto a) . Na fantasia se restabelece de modo ficcional a estrutura
da relação amorosa, marcada por uma renúncia e pelo reconhecimento de um
elemento terceiro que engendra toda articulação. (PASSOS, 2006, pp. 16-17)
Concebida como trauma, momento destinado ao (des)encontro com o outro,
pensemos no valor que o brinquedo e a brincadeira tomam na infância à medida que é
em torno destes, e da função significante que estes portam, que a criança pode girar e
assim inventar respostas para os problemas que se colocam . Vale a pena lembrar que
as observações freudianas sobre o brincar acentuam o seu caráter rememorativo,
repetitivo e elaborativo, causados pela inquietante articulação angústia-desejo
(FREUD,1996b). Nesse sentido, esquecimento, lembrança e memória atravessam o
brincar que tem como função repetir e elaborar a experiência. Em alguns de seus
trabalhos Lacan (1995;1998) amplia a leitura freudiana evidenciando o caráter
estrutural da atividade lúdica vivenciada pela criança “não apenas pela articulação
significante, mas também pela circulação de posições e pelo funcionamento simbólico
em que se convocam mutuamente presença e ausência”. (VORCARO, p. 180) É a
repetição que possibilita este movimento, uma vez que face “à coisa toda” e à falta de
respostas que a acompanha, a criança pode (re)construir significações “lógicas e
ilógicas” e desse modo bordejar o real que cerca as duas questões que lhe constituem
neste momento: filiação e sexualidade. É neste processo que o princípio da narrativa,
destacado por Benjamin, pode e deve ser concebido como elemento próprio ao
brinquedo, uma vez que em tal momento a criança convive a um só tempo com a
imensidade de significados pelos quais foi um dia capturada e com a “ falta de
respostas” que advém de sua relação com o Outro.
No texto “História cultural do brinquedo” (1994c, p. 247 ), Benjamim destaca: “A
criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se
padeiro, quer esconder-se e torna-se ladrão ou guarda”, para pensarmos no valor da
palavra que recobre o objeto brinquedo. É por isso mesmo que, para ele, quanto mais
naturais forem os brinquedos - a bola, o arco, a roda de penas, o papagaio - mais
próximos eles estarão de seu valor de experiência.
Desse modo, contrariamente ao que se pensa, não é a capacidade que o objeto
brinquedo tem de reproduzir o real – processo de miniaturização dos objetos - realçada
por sua potência tecnológica e beleza plástica que possibilitará à criança a vivencia de
uma experiência em sua relação com o mundo, mas a possibilidade que uma palavra
ali se inscreva podendo deslocar, (re)combinar ou esvaziar significados ali inscritos,
e assim ousar na produção de um “ aparente” sem sentido. Lembremos que para a
psicanálise, o brinquedo e a brincadeira fazem vigorar, por deslocamentos substitutos, a
realização de desejos. O brinquedo pode ser então qualquer coisa, um pedaço de
tecido, um copo plástico de yogurte ou a tampa do perfume da mãe.
Cito Benjamim:
Elas sentem-se irresistivelmente atraídas por destroços que surgem da
construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate e do
marceneiro. Nesses restos elas estão menos empenhadas em imitar as obras
dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através
daquilo que criam em suas brincadeiras, uma nova e incoerente relação.
(1994, p. 77-78).
Para Santa Roza (1993), o brincar tem a função fundamental de abertura para a
organização da linguagem, possui dimensão ontológica capaz de produzir o movimento
constituinte da realidade psíquica, de promover as relações do sujeito com a realidade e
de ter função significante uma vez que seus elementos circulam na combinatória das
trocas entre inconsciente e pré-consciente. Ainda para esta autora, o brincar pode ser
remetido aos devaneios e a criação artística por tecer a fantasia, reconciliar o
inconciliável e realizar desejos. Longe de ser uma manifestação espontânea, concernido
pela combinatória do jogo significante, o brincar convoca a uma disposição para
transitar nessa estranha temporalidade em que os traços da experiência podem se
realinhar.
É por isso mesmo que o carrinho quebrado é motivo para se fazer uso da caixa
de ferramentas do pai, e o macaco que não assovia, os acessórios extraviados da boneca,
o estojo de maquiagem danificado são ressignificados e recombinados compondo
novas histórias, construindo novas ficções. Desse modo, se o brinquedo oferecido e
veiculado pela mídia torna-se hoje um objeto cada vez mais aperfeiçoado, perfeitas
miniaturas do real, pergunto-me até que ponto as crianças não têm sua experiência
obstaculizada, uma vez que deles quase nada de novo se pode criar ou falar, a não ser
obedecer aos seus comandos e submeter-se as funções pré-determinadas sempre ao som
de seus slogans. Capturados pelos nomes que dão créditos aos brinquedos – Barbie,
Polly, Power Rangers, Ben 10 - e pelas funções que vêem devidamente especificadas
nos diversos tipos de carrinhos ou bonecas, a criança já não se sente mais convocada a
inventar, criar com palavras novas situações, novas significações, a partir das quais
possa engendrar novas tramas e resolver questões que lhe aflijam.
A repetição e o brinquedo.
É Freud quem apresenta o brincar na série substitutiva, a mesma que conjuga a
alucinação da satisfação, o pensamento, a fantasia,o devaneio, o sonho e o chiste sendo
que estas formações têm em comum o fato de fazerem vigorar por deslocamentos
substitutos, a realização de desejos que se dão sob a forma da repetição.
No texto, “Brinquedo e brincadeira: observações sobre uma obra
monumental (1994d, p.252)”, Benjamim exclui a dimensão imitativa do brinquedo –
“quanto mais eles imitam mais longe estão da brincadeira viva” e afirma ser a repetição
a lei que rege o mundo da brincadeira. Leitor de Freud, Benjamim destaca as
elaborações freudianas sobre o conceito de compulsão a repetição presente no texto
“Mais além do principio do prazer (1996b)” e arrisca: “a repetição é a essência da
brincadeira”. Logo mais ele insiste: “a essência da representação como da brincadeira,
não é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”, é a transformação em hábito de
uma experiência devastadora” (idem, p. 253). E se para Benjamim, repetição é o
modo de girar “em torno”, de “fazer sempre uma outra coisa”, lembremos que para
Freud e Lacan, a repetição envolve ainda o impossível de pensar e impossível de dizer
(LACAN, 1988)iv. É por isso que ao repetir uma cena, um gesto, uma ação, fazendo
uso do brinquedo e da narrativa, uma outra combinatória entre termos e posições
significantes poderá se dar e, desse modo, produzir-se uma nova circulação significante
que permita a criança novas possibilidade de relação com o Outro.
No Seminário XI (1988), Lacan faz um comentário sobre o lúdico. É quando
comenta a brincadeira do neto de Freud com o carretel “for-da”. Nesse momento Lacan
assinala que o segredo do lúdico é a diversidade radical que constitui a repetição em si
mesma. A diversidade radical, o novo radical presente na repetição lúdica é a repetição
do real, do encontro com o real, presença real no Campo do Outro.
Contudo, se o brinquedo e o jogo materializam a relação experiência e
linguagem, momento em que pela via é narrativa, é possível lidar com os efeitos do real
construindo histórias e deslocando significações. Existem dois processos a partir dos
quais me parece ser plausível pensar uma possível destruição desta experiência na
infância: uma cultura escolar que significa o brinquedo e o jogo como instrumentos
direcionados ao desenvolvimento e a aprendizagem, para fazer deles conhecimento, e a
presença cada vez mais pregnante de brinquedos eletrônicos e tecnológicos no mundo
da infância.
Cultura escolar, brinquedos eletrônicos e tecnológicos
Segundo Manson (2002), os autores gregos e latinos já nos oferecem o início de
uma reflexão sobre o lugar que ocupavam na vida afetiva da criança. Desde então,
conforme observamos anteriormente, de modo especial, duas concepções sobre a
importância dos brinquedos e dos jogos no processo educacional dividiram os
pedagogos : de um lado, o brinquedo como objeto frívolo, motivo de prazer e de
alegria, e do outro, como elemento educativo.
Para Phillip Aries (1985), o vínculo entre jogo e educação se dará
essencialmente a partir do século XVII com os pedagogos humanistas, médicos
iluministas e primeiros nacionalistas. Recoberto pelas concepções de aprendizagem e de
desenvolvimento, o jogo passa a ser significado como “jogo educativo” e, deste
modo, torna-se controlado, limitado e direcionado à aquisição de determinadas
habilidades e conhecimentos.
No que se refere às teorizações produzidas sobre a criança no final do século
XIX e inicio do XX, penso que as reflexões realizadas por Friedrich Froebel (1782-
1852), Maria Montessori (1870-1909) e Ovide Decroly (1871-1932) foram de
fundamental importância no aparecimento de sistemas pedagógicos que reconheceram
e incorporaram em sua prática o uso do jogo e do brinquedo. Para Froebel, o brincar e
a brincadeira foram concebidos como primeiro recurso no caminho da aprendizagem.
Não eram concebidos apenas como diversão, mas um modo de criar representações do
mundo concreto com a finalidade de entendê-lo (ARCE, 2002a; 2002b). Contudo, de
modo aparentemente paradoxal, se as reflexões de tais educadores redefinem a
educação escolar , também parecem ter contribuído com a produção de práticas que
acabam por vincular o brinquedo a uma dimensão pedagógica.
Tomando como referência as discussões anteriormente apresentadas,
transformado em instrumento indispensável no processo de desenvolvimento,
aprendizagem e de aquisição do conhecimento, o brinquedo tende a sair do campo da
experiência, para se transformar em experimento digno de comprovação científica. A
questão é que se não há o que dizer para além do que é previsto pelo discurso
pedagógico, e se os resultados obtidos devem ser racionalizados, o ato de brincar pode
vir a ser circunscrito à relação “experiência e conhecimento” e não mais “experiência e
linguagem” . Funcionamento que se torna incompatível com o espírito da narrativa que
acompanha a brincadeira e coloca em questão a relação brinquedo, experiência e
linguagem. Conforme vimos anteriormente, é justamente a subversão de conteúdos e
das significações pré-determinadas que devolve à criança a possibilidade de falar
(narrar), e ao brinquedo seu valor de criação, ou seja, de experiência
Por outro lado, pensar este artefato em uma sociedade capitalista, determinada
pelo discurso tecnológico e marcada pela prática do consumo, implica considerarmos
em sua fabricação os efeitos de tal acontecimento. Brinquedo racionalizado é a
denominação dada ao brinquedo que passa pelo sistema racional de produção: análise
do mercado, determinação da expectativa dos consumidores e esquemas de distribuição.
(BROUGERE, 1995) Modificado ao ritmo das evoluções tecnológicas, o brinquedo de
hoje corresponde ponto a ponto com a proporção e os parâmetros de uma lógica que
ordena, classifica e reproduz o objeto padronizado até o infinito (idem, 1995) .
Para Brougere (idem, p.33), em nosso tempo, “Criar um brinquedo é propor
uma imagem que vale por si mesma e que dispõe, assim, de um potencial de sedução,
que permite ações e manipulações, em harmonia com as representações sugeridas.” A
questão é que, face a esse casamento perfeito entre a função contida no brinquedo e sua
significação, fica cada vez mais difícil atravessar os significantes propostos para além
do sugerido pela representação. A potência da significação produzida pela imagem é de
tal maneira pregnante que torna-se quase impeditivo à criança que manipula o
brinquedo dar a ele uma outra significação a esperada. Dotado de uma grande potência
imagética e de dispositivos tecnológicos que ampliam um possível preenchimento da
satisfação daquele que deverá manipulá-lo , o brinquedo tende a tornar-se um objeto
total. É por isso que a falha em um brinquedo mecanizado é quase intolerável. Muito
mais inclusive que em um que não faça uso de dispositivos tecnológicos.
De modo aparentemente paradoxal, se por um lado, com a ajuda da tecnologia,
os brinquedos em série tornam-se portadores de funções especificas - voar, cantar,
acender luzes e falar - e parecem ganhar vida própria, por outro, delega-se a criança o
papel de expectador. Caberá a esta acessar a informação contida nas instruções e apertar
o botão para que o objeto em questão funcione. Nesse contexto, duas observações
podem ser realizadas: em primeiro lugar, se de um lado, os brinquedos aperfeiçoados
ganham “vida” - o sapo coaxa, o cachorro toca saxofone, o porco ronca - por outro,
a criança se emudece. Em segundo, quanto mais o brinquedo subtrai-se ao controle da
criança, mais ele se torna estranho a esta. E se a uma determinada boneca caberá falar,
a outra chorar e a outra fazer xixi, é como expectadora que a criança é convocada a
participar. Apertando um botão ali, comprimindo a barriga de lá, friccionando o carro
acolá, meninos e meninas tornam-se cativos das significações já definidas. Sem ousar
em novas e incoerentes relações, perde-se a capacidade de ser sujeito de sua própria
experiência, afinal, não há muito a dizer a não ser repetir instruções e comandos já prédefinidos.
Expropriada de sua capacidade de “narrar” e de “experimentar” a criança
despede-se do mundo mágico da ficção. Era uma vez um “faz de conta” ...
Para finalizar, penso ser importante apresentar algumas considerações: em
primeiro lugar, gostaria de assinalar que, indicar uma possível redução da potencia
significante do brinquedo e da brincadeira em situações educativas, na medida em que
este tem sido significado como instrumento de desenvolvimento e de aprendizagem, não
implica desconsiderar a importância de sua presença no espaço da educação infantil.
Conforme o texto apontou, o modo como a criança realiza a experiência do brinquedo é
de fundamental importância na constituição de uma determinada posição subjetiva. A
reflexão que apresento tem como objetivo destacar o valor significante do brinquedo,
bem como seu caráter rememorativo, repetitivo e elaborativo causado pela articulação
angústia-desejo e desse modo, questionar a ênfase atualmente dada em sua dimensão
didático-pedagógica.
Em segundo lugar, supor que a ênfase na dimensão pedagógica do brinquedo
e a demanda por brinquedos eletrônicos e tecnológicos possam produzir no brincar um
congelamento significante que venha a obstaculizar uma possível reorganização dos
termos e posições na combinatória de trocas entre consciente e inconsciente, o que
dificultaria a produção de novas configurações subjetivas na criança, não significa
afirmar que à esses dois processos as crianças se submetam inteiramente. Afinal, como
sujeitos de desejo, é sempre possível subverter o desejo do Outro e fazer de sua
demanda uma outra coisa. Quem sabe a presença dos brinquedos quebrados, a reiterada
subversão de suas funções e sua conseqüente reutilização como “resto”, não nos
permita pensar que uma nova combinatória de traços e de lugares anteriormente
inscritos também ali tenha se dado? Questão que fica para um maior aprofundamento.
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VORCARO, Ângela e VERAS, Viviane. O brincar como operação de escrita. São
Paulo:Campinas, [mimeg.] 2009.
i Notas
a Neste ensaio, Agamben concebe a infância como lugar lógico em que pode se expor a relação
experiência e linguagem: “A in-fância que está em questão no livro não é simplesmente um fato do qual
seria possível isolar um lugar cronológico, nem algo como uma idade ou um estado psicossomático que
uma psicologia ou uma paleoantropologia poderiam jamais construir como um fato humano independente
da linguagem. Se a condição própria de cada pensamento é avaliada segundo o seu modo de articular o
problema dos limites da linguagem, o conceito de infância é, então, uma tentativa de pensar estes limites
em uma direção que não é aquela trivial, do inefável (2005,p. 10).”
ii “Em busca pela certeza, a ciência moderna abole esta separação [experiência e ciência] e faz da
experiencia o lugar - o método, isto é, o caminho – do conhecimento. Mas, para fazer isto, deve proceder
a uma refundição da experiência e uma reforma da sua inteligência, desapropriando-as primeiramente de
seus sujeitos e colocando em seu lugar um único novo sujeito.” (p. 28)
iii Na glosa “Infância e língua”, apresentada no artigo “Infância e história: ensaio sobre a
destruição da experiência” (2005,p. 68), Agamben utiliza-se dos trabalhos de Benveniste (1989a; 1989b)
para pensar o hiato entre a língua concebida como o mundo fechado dos signos (semiótico ) e o discurso
concebido como a atividade do locutor que coloca em ação a língua (semântica). “É o fato de que o
homem tenha uma infância (ou seja, que para falar ele tenha e expropriar-se da infância para constituir-se
como sujeito de linguagem) a romper o “mundo fechado” dos signos e a transformar a pura língua em
discurso humano, o semiótico em semântico [...] o humano propriamente nada mais é que esta passagem
da pura língua ao discurso”
iv Lacan “não há como confundir a repetição nem com o retorno dos signos , nem com a
reprodução, ou a modulação pela conduta de uma rememoração agida” (11988, p. 56). A repetição como
real apresenta-se na experiência analítica sob a forma do que nele [o real] há de inassimilável.





INFÂNCIA E EDUCAÇÃO: AS CRIANÇAS SAÍRAM DA FOTO E ENTRARAM
NAS SALAS DE AULA
Angela Francisca Caliman Fiorio – UFES e Prefeitura Municipal de Vitória

A pesquisa em questão problematiza algumas imagens construídas sobre as crianças, a
aprendizagem e o cotidiano. Para acompanhar os movimentos de criação, lança mão da
cartografia associada à pesquisa com o cotidiano. Levada pelos afetos, a escrita desta
pesquisa procura registrar as linhas traçadas pelas crianças em seus jogos de
experimentações, capturando o que elas têm a dizer, potencializando suas pistas,
fazendo-nos repensar a Educação Infantil. Se, de modo geral, existem ou são produzidas
imagens de crianças que vigoram na educação, essas imagens não interessam. Para além
dessas imagens, fala-se das crianças que conseguem transformar as relações com a
aprendizagem e com os espaçostempos onde a vida escolar é tecida diariamente. Pelo
que foi sentido e percebido, arrisca a dizer que os movimentos cotidianos de rebeldia
estão agindo por entre os campos de ação dos valores estabelecidos, provocando
mudanças mesmo pequenas. Sob as leis e as normas, encontra Rita, Davi, Vivi, Danilo,
Denise e Brendo...
Palavras-chave: educação infantil; cotidiano; aprendizagem.
A infância: uma política...
Nesta empreitada, me embolei com as crianças de um Centro Municipal de Educação
Infantil (CMEI) de Vitória – ES, ficando nessa unidade de ensino de maio à novembro
de 2006, entrando com elas num devir pronto para protestar e elaborar novos planos de
resistência. E criar é resistir. Para (DELEUZE, 1998), o sentido da criação é encontrado
na experimentação, em sua condição de imanência, ou seja, considerando as relações
singulares que travamos com as coisas que cruzam o nosso caminho. Nessa perspectiva,
a aprendizagem não passa somente pela capacidade de explicar e nem de representar o
objeto, mas em deixar-se afetar pelo acontecimento. Entrar num devir é seguir uma
linha de fuga que consiste em resistir diante das formas de enquadramentos que nos
impedem de criar.
Ao invés de tentarmos compreender o que acontece no cotidiano da Educação Infantil
procurando pela memória, o que é isso ou o que é aquilo, como se fosse possível
marcar os trajetos das crianças do começo ao fim, controlando todo o processo; é
melhor procurarmos pelo acontecimento. Nesse sentido, podemos falar de uma
dimensão labiríntica do cotidiano, na medida em que sobre ele não se estende nenhum
2
fio temporal condutor. O risco de nos perdermos neste labirinto vale a chance de nos
encontrarmos como um ser em processo. À maneira de Deleuze, devemos procurar o
que se passa no meio de uma experimentação: percorrer por entre as linhas que
compõem os mapas das crianças. Isso implica cartografar o que está em pleno
movimento e que não se submete a nenhuma posição do tipo é.
Rejeitamos a lógica da explicação, na medida em que ela se arroga de dar o sentido
último, falar em nome do outro e estabelecer uma relação direta entre causa e efeito,
que consiste em dar ao mundo uma única explicação, pressupondo uma harmonia entre
ambas: “[...] ela é desinteressada porque não é estimulada pela família” ou “[...] uma
boa aula depende de um bom planejamento”. O tempo, que compreende a relação
direta entre causa e efeito, vive de espera. Nesse caso, o futuro espera passivamente
pela chegada do “mesmo”. Ele é a projeção do lançamento de um dado que segue
numa única direção. Logo, seu movimento não recebe o acontecimento, porque criar
não é esperar. Segundo Nuno Fadigas (2003, p. 36), “[...] criar é simplesmente não
esperar. O novo é o não esperado, pois sendo esperado não o é mais”.
É preciso procurar o que ocorre no meio de uma experimentação real, e
não a falta que preside a uma interpretação preestabelecida. As pessoas
estão sempre no meio de um empreendimento, onde nada pode ser
assinalado como originário. Sempre coisas que se cruzam, jamais coisas que
se reduzem: uma cartografia [...] (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 129, grifo
nosso).
Se, de um modo geral, existem ou são produzidas imagens de crianças que vigoram nos
esquemas pedagógicos preparados antes mesmo da chegada delas, estas imagens não
nos interessam. Para além dessas imagens, estamos falando da criança encarnada
(NAJMANOVICH, 2001) e sensível que se vale de sua experimentação para interpretar
o que lhe acontece. Dessa forma, a grande questão desta pesquisa passa por uma escuta
atenta ao que as crianças estão tentando nos dizer, levando para a análise estas questões,
fazendo-nos re – pensar a nossa prática educativa nesse segmento de ensino.
Ao mergulhar nas experimentações das crianças, encontrei uma multiplicidade de
agenciamentos e de coisas que se relacionam e se conectam e, nesse emaranhado de
linhas, puxei o fio que se ligava à morte, perguntando sobre os seus sentidos. Apesar
de, nesse momento, eu ter associado morte a medo – não consegui disfarçar; a resposta
3
de Rita se desvia do sentido que eu havia atribuído dizendo que tem medo de cachorro.
Podemos deduzir disso que as crianças são mais resistentes do que nós. Suas linhas
fogem com muito mais velocidade e intensidade do que as nossas. Se a morte já tem
alguns sentidos construídos em nossa cultura, para as crianças, esses sentidos não lhes
dizem quase nada. Quanto a José, também se desvia de minha questão. Fala das
circunstâncias da morte como aquelas existentes na relação com o cotidiano do seu
bairro:
- O que é a morte? 1 (Autora)
- Quem tem medo da morte? (Autora)
- Eu tenho medo de cachorro. Tem um cachorro lá que fica andando na rua.
Um dia um menino assustou o cachorro e saiu correndo e o cachorro veio
atrás de mim. (Rita)
- A morte é um fantasma, aí, aí, pega a gente e mata. (Vitória).
- A morte mata a gente. (Tânia)
- Ela aparece e dá susto nos outros. Ela é um monstro. (Rita)
- A morte vem à toa. (Tânia)
- Aqui, lá perto da minha casa, né? Um ônibus tava parando no ponto para a
mulher descer, né? Aí, quando a mulher desceu né? Quando a mulher foi
atravessar, a moto veio e passou bem assim, voadona, e a mulher bum! Caiu
no chão. Aí a boca dela machucou todinha. Aí ela morreu. (José)
- Não existe a morte porque a televisão só passa coisas mentirosas. A
televisão engana algumas gente. Mas tem hora que a televisão passa a
verdade. (Rita)
- Você pode falar uma mentira que a televisão conta? (Autora)
- Tem filme que faz um montão de coisa mentirosa. Que eles atira... É tudo
mentira. Aí atira, aí morre é mentira é só filme... (Rita)
- Tem vez que a televisão fala a verdade e a verdade que a televisão falou um
dia foi que a estrada pegou fogo, lá perto onde eu moro. (Tânia)
- E pegou fogo mesmo? (Autora)
- Pegou. Só o desenho é mentira. (Tânia)
- Por quê? (Autora)
- Porque é feito de computador. (Tânia)
- Tia, eu tava no ônibus que tinha três ladrões. Pediro pra passar as
grana e o trocador não passou. Aí mataro o trocador. (Marcos)
1 Essas transcrições são falas das crianças onde a pesquisa foi realizada. Os nomes são fictícios para
manter em sigilo suas identificações.
4
Se, para Deleuze, interpretar é atribuir sentidos, estou dessa forma, assumindo alguns
sentidos para a criança e, para tanto, utilizo as palavras do próprio Deleuze (1998, p.
56), em que ele diz que “[...] as crianças são rápidas porque sabem deslizar entre”.
Rápido não quer dizer que são velozes e que correm muito – embora também o sejam –
mas que as crianças tornam-se sujeitos da experiência com o mundo, permitindo-se
desviar dos modelos instituídos traçando linhas de ruptura. Neste caso, fugir não é
abster-se do mundo é, antes, talhá-lo aproveitando-se de uma vaga, traindo a ordem
estabelecida, traçando toda uma cartografia.
As crianças, assim como todos nós, estão expostas a vários contextos de agenciamentos,
como a escola, a igreja, o bairro, os amigos, as músicas, a violência, a rua, o que não
significa que estão se sujeitando o tempo todo ao que está posto, mas que respondem a
essas chamadas de diferentes formas. As crianças não fazem ponto. Não marcam “toca”.
Não dão “bobera”. Elas estão sempre no meio. Quem está no meio só faz linha.
As questões que nos remetem ao que falta na criança para atingir certo modelo de ser
criançaaluno, não nos interessam: - “sabe, professora, esse menino é assim porque nem
eu e nem o pai dele conseguimos aprender na escola...” Análises como essa se
reencontram com as origens e pensam que podem bloquear os movimentos e as
relações. Interrompem qualquer possibilidade de criação com a criança. É como se os
pais tivessem lugares ou funções primeiras, independentes dos meios. Um meio, diz
Deleuze (1997, p. 73), “[...] é feito de qualidades, substâncias, potências e
acontecimentos [...]”. Nesse meio, os pais ou qualquer adulto podem exercer o papel de
fechadores ou abridores de portas. Sobre a trajetória do filho, não se sobrepõe o
decalque do pai e da mãe. Se a interpretação escolar, frequentemente, se contenta em
julgar pelo que falta, Deleuze pensa o contrário disso. Para ele, cada um de nós agencia,
“[...] não com o ovo de onde saiu, nem com os genitores que o ligam a ele, [...] mas
com um espaço social e político a ser conquistado” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.
94).
As multiplicidades não têm qualquer relação com prescrições e não queremos criar
definições arbitrárias acerca do que podem as crianças a partir da idade ou dos supostos
estágios pelos quais passam elas na aprendizagem. Essas definições partem de
determinações que tem no decalque/modelo sua fórmula de explicação nas quais leituras
5
equivocadas são lançadas “sobre” as crianças. O decalque quer discipliná-las, classificálas,
estabilizá-las seguindo uma estrutura que não tem nenhuma relação com a
experimentação real das crianças.
Fig 1 – Sorrisos, gritos, abraços: espasmos do corpo
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o
mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente
suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou
engendrar novos espaços-tempos [...]. É ao nível de cada tentativa que se
avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um
controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e o povo (DELEUZE,
1992, p. 218).
Livre de qualquer imagem, daquilo que poderia ser, o que conta num acontecimento são
as mutações, o engendramento de novas relações com o corpo, com o aprender, com o
espaço, com o tempo, com o amor, com o trabalho... O que muda é a nossa maneira
singular de perceber e de sentir o que nos chega, recebendo o deleitável e rejeitando o
insuportável. Essa percepção coloca em análise as formas instituídas produzindo modos
de vida mais felizes, potentes, abertos à criação.
Se o cotidiano se afirma e se realiza na repetição de todas as diferenças ao extremo de
quebrar as imagens construídas “sobre” sua existência, significa, entre outras coisas, que
as crianças, ao invés de se ajustarem aos esquemas pedagógicos preparados para recebê6
las, tecem sua repetição nos espaçostempos de liberdade; criados, arrancados à força em
que inscrevem o máximo de diferença na repetição.
No entanto, a imagem do saber, como um dos postulados da concepção clássica do
pensamento, compreende a aprendizagem como um caminho traçado do começo ao fim,
que submete a educação das crianças a um plano que antecede as experiências,
desconsiderando a sua condição imanente. Preso a imagem do saber, o aprender vem a
ser somente o intermediário entre não-saber e saber, a passagem de um ao outro.
Nessa perspectiva, a educação tem uma função preparatória e reguladora em que passa
a distribuir o certo e o errado conforme o esperado: o saber nada mais é do que
simplesmente o resultado. O que pode existir de mais estéril ao pensamento do que
uma Pedagogia que lança mão de problemas já feitos e espera dos alunos apenas a
resposta?
Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender – que amores tornam
alguém bom em latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que
dicionários se aprende a pensar [...]. Não há método para encontrar tesouros
nem para aprender, mas [...] uma cultura ou uma paideia que percorre
inteiramente todo o indivíduo (um albino em que nasce o acto de sentir na
sensibilidade, um afásico em que nasce a fala na linguagem, um acéfalo em
que nasce pensar no pensamento). O método constitui o modo de saber quem
regula a colaboração de todas as faculdades [...] pressupondo uma boa
vontade como uma decisão premeditada do pensador. Mas a cultura é o
movimento de aprender, a aventura do involuntário, encadeando uma
sensibilidade, uma memória, depois um pensamento, com todas as violências
e crueldades necessárias [...] (DELEUZE, 2000, p. 278). [...] o aprender é a
verdadeira estrutura que une, sem as mediatizar, a diferença à diferença, a
dessemelhança à dessemelhança, e que introduz o tempo no pensamento, mas
como forma pura do tempo vazio [...] (DELEUZE, 2000, p. 280).
Na filosofia de Deleuze, o movimento do aprender não se reduz ao clássico percurso
que vai do saber ao não-saber; sua condição está posta para fora de qualquer elemento
a priori, de conteúdo inatista, ou de qualquer mecanismo de assimilação e de
regulação. Finalmente, diz Deleuze (2000, p. 279): “[...] a aprendizagem está, antes de
mais nada, do lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo fora da caverna
considera somente o resultado – o saber”.
7
Fig. 2 – Uma imagem da Pedagogia
O aprendiz, como podemos dizer... não usa somente a inteligência, mas antes o coração,
uma terra estranha por onde ninguém anda. Em Proust e os Signos, é que Deleuze fala
do movimento do aprender como um ato amoroso passando ou não pelo coração. Sua
intensão é nos mostrar que a busca pelo sentido só ocorre a um sujeito necessitado em
função de uma situação concreta. As significações explícitas e convencionais,
apreendidas pela inteligência, não nos comprometem. Elas passam ao largo de nossos
encontros.
Nos jogos das crianças, as peças/letras têm contornos conectáveis em todas as pontas,
sempre desmontáveis, reversíveis, modificáveis. Suas peças operam novas conexões,
criam novas versões, alteram posições, subvertem hierarquias, compõem maquinarias.
Freqüentemente, as crianças fazem muitas perguntas. Insistem. Resistem. Lutam.
Fogem. Agenciam. Questionam. Formam paisagens tão estranhas à nossa lógica feito
as da lua...
- Tia, você num vai tirá foto hoje, não?
- O filme acabou. (Autora)
- Domingo, tia, nós fomos lá na Pedra da Cebola pra tirá umas fotos lá, mas
só que minha mãe pegou a máquina emprestada com a irmã dela. (Daniel)
- E tirou as fotos? (Autora)
8
- Tem um monte de foto de bebê. Meu irmão e eu. Andando de bicicleta,
pescando. Lá em casa tem foto da minha mãe e do meu pai casando. Ela tá de
noiva. (Daniel)
- Tem tudo isso, Daniel? (Diego)
- Tem meu pai me deitando na cama, quando eu era bebezinho. (Daniel)
- Seus pais se casaram há pouco tempo? (Autora)
- Tem muito tempo já. (Daniel)
- Você viu o casamento da sua mãe? (Autora)
- Não. Eu tava na barriga dela, mas meu irmão já tinha nascido porque meu
irmão nasceu primeiro. Depois ela tirou uma foto lá do médico, quando eu
era bebezinho, mamando... um monte de foto. (Daniel)
- Um montão? Então ela gastou toda a bateria! (Diego)
- A bateria de quê? Não. Minha mãe tinha uma máquina só que quebraram
tudo. Meu irmão mexeu. Não tem meu carrinho de controle que eu te falei?
Tem não sei quanto de tempo que ele não anda mais. Sabe por quê? É
porque... Não, é porque a pilha não acabou, não, é porque tem que carregar a
pilha pra ele andar. Se a pilha tiver ruim... Ele tem cinco pilhas. (Daniel)
- Caracas, cinco pilhas? (Diego)
- O do meu amigo leva seis, mas é um caminhão! (Diego)
- Tia, meu pai trabalha de gesseiro. (Tâmara)
- Gesseiro? (Autora)
- Faz gesso de teto. (Tâmara)
- Meu pai também, ele trabalha junto com o pai dela. (Vivian)
- Tia, meu pai trabalha de quê, mesmo? Meu pai usa dois carros, um é dele e
o outro é do meu tio, mas ele não pode anda, não, porque meu tio não tem
carteira assinada. Não... É como é que é o nome mesmo? É uma carterinha.
[carteira de motorista]. Então, aí meu tio não pode andá. Aí, quando o carro
do meu pai fura o pneu, aí ele pega o carro do meu tio. Aí, depois, meu pai
conserta. (Daniel)
- Sabe de que que minha mãe trabalha? De médica. (Daniel)
- De médica... (Autora)
- Não. Minha mãe tem um patrão que ele que é médico. Minha mãe marca as
consulta. (Daniel)
- Ah, ela é secretária. (Autora)
- Gravado, ô; gravado, ô; oi, cadê você? Eu vim aqui só pra te vê e você tá só
me filmando, né? (Daniel)
- Meu pai parou de fuma, tia. (Daniel)
- Hum... (Autora)
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- Sabe por quê? Porque senão ele fica igual aqueles homens que passa na
televisão. E, também, meu pai é da igreja, né!
- Ah ele é da igreja... (Autora)
- É, mais tem um cunhado da minha mãe que fuma também. Eu já falei pra
ele pará de fumá e de bebê aí ele falou que ia pará, mas ele não parou ainda.
Mas eu vô da um monte de porrada nele. (Daniel)
O absolutismo da razão é quebrado com a chegada das crianças. Em grupos, fazendo
barulho, sacodem a poeira, tiram as coisas de seus lugares. Invertem posições, inventam
novas composições. Embaralham as letras. O alfabeto da criança é móvel: montam e
desmontam-se palavras. Misturam letras aos números e números aos desenhos.
Subvertem a hierarquia e a ordem: o “lh” e o “ch” só pelo final do ano! Primeiro as
mais simples depois as mais complicadas? Daiane se molha na chuva! Ela não vê a uva!
E chove muito! Lá fora chove. São essas aberturas que permitem novos encontros.
Como poderiam esperar?
- Tia, cadê os índio?
- Como assim? Vocês brincaram com eles o dia inteiro!
- Não, tia, aqueles outro, com arco e flecha ingual que a gente viu no livro. A
gente qué vê eles! Nós num vamos vê eles não?
- Vocês já viram. Brincaram juntos!
- Então eles é igual a gente?
Esse foi o desfecho de uma visita a uma das aldeias indígenas do município de
Aracruz/ES com as crianças. Passamos o dia inteiro na aldeia. As crianças lancharam,
brincaram, brigaram, correram, conheceram a escola das crianças indígenas... No final,
no momento de entrarmos no ônibus, quando todos se preparavam para voltar, um
grupo de crianças, percebendo que não haveria mais nenhum lugar a ser visitado, vêm
curiosas em nossa direção e lançam esta questão: “Tia, cadê os índio?”
Sim, nós saímos do CMEI para visitar os índios e os índios não estavam lá? Êpa! O
índio do livro! Os índios que estavam lá pularam do livro. Só ficou sua foto. Sua
imagem congelada, parada no tempo: ser índio é. Acho que alguém esqueceu de avisar
isso, mas as crianças logo notaram a diferença. Os índios com os quais elas brincaram,
em nada, ou quase nada, lhes diziam a respeito dos sentidos que lhes tinham sido
atribuídos. A imagem do índio original foi borrocada. Brinca de bola, joga baralho,
10
gosta de bonecas. Saiu de sua rede, arregaçou as mangas, foi estudar, trabalhar na usina,
beber cachaça. Veste a camisa do Flamengo, do Vasco, de todos os times. “Então eles é
igual a gente?”
[...] o que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o
inimigo, e nada supõe a filosofia; tudo parte de uma misosofia. Não contemos
com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele pensa;
contemos, ao contrário, com a contigência de um encontro com aquilo que
força a pensar, a fim de elevar e instalar a necessidade absoluta de um acto de
pensar, de uma paixão de pensar. [...] Há no mundo alguma coisa que força a
pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma
recognição (DELEUZE, 2000, p. 240).
O que pode jogar uma criança na aventura de um pensamento? “A busca da verdade é a
aventura própria do involuntário. Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o
pensamento, este nada significa [...]”. Segundo Deleuze (2003, p. 89), não basta uma
boa vontade nem um método bem elaborado para ensinar a pensar... Pode ser uma
sandália. Uma foto. Um tazo. Uma bíblia. Uma rua. Um Bob Esponja. Uma pilha. Uma
palavra. Um sorriso. Um vento. Uma professora. Um livro. Uma unha. Um dente. Um
instrumento musical:
- Tia, você sabe o que é um saxofone?
- É um instrumento de sopro e é muito grande.
- Isso mesmo. Você sabe, lá na minha igreja tem muitos instrumentos musicais
mas o que eu mais gosto é do saxofone. Meu pai até mi deu um cofrinho, pra
mim juntá moedas, pra mim comprá o saxofone. O meu pai toca violão mas ele
vai pedi pro rapaz que toca o sax pra me ensiná.
- Mas o sax é grande e pesado pra você segurar...
- Primeiro eu vou juntar dinheiro pra comprar, aí, até lá, eu já cresci um pouco.
Eu quero ser um saxofonista. Tia eu vou desenhar um sax pra você.
Professora:“todo mundo prestando atenção! Hoje vamos trabalhar uma letra do
alfabeto. Quero palavras que comecem com a letra ‘j’ mas tem que ser de coisas que
têm na escola... Olhem para as paredes, observem bem o ambiente...”. Ouve-se lá de
trás: “Jorge, tia!”. A professora pede ao aluno que repita a palavra: “Jorge, tia!”.
Retruca a professora:“que Jorge? Que Jorge? Não tem nenhum Jorge na sala!”.
Responde a criança: “é o nome do meu pai, tia”. Professora:“mas eu quero nome de
coisas que têm na es-co-la”. Criança:“mas o nome do meu pai começa com ‘j’”.
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- Vê, eu não posso falá o nome do meu pai... Sussurrou João.
- Sabe como chama meu pai, tia? O nome dele é Fernando, mas ele não mora
com a gente. Ele tem outra família. (Vivian)
- Quem não mora comigo é minha mãe, ela mudou pra Linhares. (Débora)
- Ela arranjou outro homem, né?. (Vivian)
- Mentira, não foi por isso que ela foi embora. Minha vó disse que ela foi
trabalhar! (Débora)
- Mas todo mundo da rua sabe que ela arranjou outro homem. (Vivian)
A professora chamou a atenção desse grupinho, porque os alunos estavam conversando
– só que baixinho, como sussurrou Diego: “a tia não gosta que a gente conversa não
mas a gente conversa, só que baixinho, né”, – quando sugeri que parassem de falar um
pouco. Muito frequentemente eu ficava constrangida porque não queria perder a
conversação das crianças, como esse fragmento transcrito acima, no entanto, mesmo
percebendo que a professora não gostava eu usava a mesma tática das crianças. Espaços
vazios. Isso tudo tem a ver com as linhas do tempo implicadas na produção de sentidos
em que as crianças falam sobre suas redes vividas, marcadas pelo abandono, pelo
desamor, mas também por invenções... O vazio que, em geral, é tido como ausência de
sentido, é exatamente o contrário, nele acontece a produção de sentidos em que são
elaboradas as forças do pensar e do aprender. Podemos perceber nessa produção que
processos de vida e de conhecimento são inseparáveis.
Sobras de algumas ex-travagâncias pela filosofia deleuziana
Nos silêncios de nossa vida, por entre nossas memórias, se localizam os nossos devires
minoritários e se eles gostam de ficar pelo meio é por força de sua potência em protestar
e elaborar novos planos de resistência. E criar é resistir. Minoritário não tem qualquer
relação com a quantidade, mas com aquilo que colocamos em questão numa certa lógica
de funcionamento. Isso nos leva a perceber também que os processos de mudanças estão
em curso nos movimentos do cotidiano.
As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode
ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao
qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho
habitante das cidades... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um
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devir, um processo. Pode-se dizer que a maioria não é ninguém. Todo
mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o
arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo [...]
(DELEUZE, 1992, p. 209).
Tratando-se de Deleuze, autor que arrisco uma leitura nesta pesquisa, torna-se quase um
imperativo, por força de seu pensamento filosófico, furtar-me a uma leitura conduzida
por um fio temporal que se estenda “sobre” ela feito um decalque. O que me ocorre
então é curtir suas idéias ou jogá-las fora na mesma intensidade. Nas dobras e nas
sobras dessas leituras, no silêncio que se faz entre nós, me perder e me encontrar. O
mais importante disso tudo não é escrever o que seu texto diz e nem o que sou capaz de
explicar “sobre” ele. Falar daquilo que não sabemos e que ignoramos é uma forma de
combater a imagem do saber entendida como o lugar da verdade e a fonte de todas as
respostas.
Por fora dos rigores dos organismos, o popular e o ignorante encontram sua genialidade
e o seu número nos signos, ou seja, naquilo que os faz pensar sem medida. A medida
limita e interrompe o devir. Ela pretende garantir a estabilidade das relações
(hierarquizantes e excludentes) numa posição que só vale pela continuidade, enquanto
os signos nos expõem à sua violência, inflamando nossa imaginação, constituindo-nos
como um ser em devir que não pode ser antecipado. Sem a exata medida de tudo e do
fundo do meu desconhecimento, é que pude me envolver com os escritos de Deleuze.
Tal cumplicidade não tem explicação, só pode ser escrita de uma maneira amorosa...
O que você tá fazendo aqui, tia? Ela é professora. Ela ensina. Tia, você tem filhos?
Não... Então como é que você é professora?
O que vamos fazer nas escolas nas quais pesquisamos? É possível separar os papéis e
nos fixarmos num dos pólos, seja no de professora, seja no de pesquisadora? Na
perspectiva das multiplicidades, os pólos não existem. No discurso da pesquisa
positivista, há uma suposta separabilidade entre o sujeito e o objeto em que um dos
pólos toma a cena central comandando a produção de sentido, determinando um lugar
para o outro, produzindo dualismos. A abordagem de Lorena, “o que você ta fazendo
aqui?”, nos obriga a pensar nos sentidos de nossas pesquisas, em suas implicações tanto
ética quanto política.
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A resposta do Rogério fala de sua experimentação. O tempo todo as crianças estão
deslizando entre nós. Sua resposta disparou meu pensamento, potencializando uma
escrita desse acontecimento. “Ela é professora. Ela ensina” lança uma suspeita sobre o
suposto lugar de poder ocupado pela pesquisadora. Uma invenção, do tipo cartesiana,
que tenta justificar a imagem de um saber especializado. Rogério coloca em questão o
pensamento dualista traçando uma linha que não quer representar nem uma nem outra, a
professora ou a pesquisadora. Ele traça uma linha que salta entre elas pronta para criar
pondo em uso um devir minoritário criador de acontecimentos. Faz circular uma
afecção. Encontramos nas crianças agenciamentos que nos transmitem um conjunto de
afetos e de paixões heterogêneas que funcionam junto com os nossos. Nesses encontros,
novas formulações aparecem na pesquisa mudando seu rumo e sua direção, no entanto o
que aparece não é da ordem do esperado, é o novo, a diferença.
Por isso, numa pesquisa cartográfica, desaparece tanto o sujeito quanto o objeto. Há
entre eles uma ponte, uma troca recíproca: “[...] o que se passa entre os dois termos ou
os dois conjuntos, é um estreito riacho que não pertence nem a um nem a outro, mas os
leva, a ambos [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 45). Não há, nesse pensamento,
nenhum relativismo, do tipo vale tudo, mas uma implicação mútua em que ambos,
sujeito e objeto, se transformam dificultando, dessa maneira, uma identificação que
defina onde um começa e o outro termina. Uma pesquisa cartográfica visa descrever os
encontros que nesse caso se passaram entre a pesquisadora e as crianças. Com isso
Deleuze e Guattari querem dizer que não há um sujeito em si e muito menos um objeto
pronto e acabado. A implicação é sempre o efeito de um encontro, ou seja, algo que se
dá nas relações.
Desta forma, torna-se quase impossível falar da existência de pesquisas em si. Essa
palavra traz muitas marcas, entre elas, a frieza, a distância, a arrogância, a imagem de
um saber... Tentei me esquivar dela de muitas maneiras. É provável que isso tenha me
tornado mais sensível para perceber as questões que as crianças me colocavam durante
o tempo em que estive com elas. As fotos, por exemplo, o David queria as suas porque
não tinha nenhuma em sua casa e queria mostrá-las a seu pai. Acabei entregando-lhe
todas as fotos em que ele aparecia. As vozes, a Vitória só queria ouvir sua voz no
gravador! O Mateus e a Vivi também queriam o gravador para ouvir suas vozes, contar
piadas e falar bobeiras. Os registros feitos ainda na sala: “o que você tanto escreve aí,
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tia”? Certamente, ao me perguntar isso, Paulo percebeu que eu escrevia “sobre” sua
turma e que estava ali na espreita em busca de “dados”, preenchendo o diário de campo.
Depois desse episódio passei a fazer os relatórios em casa, ou mesmo no CMEI, após o
horário de aula. No entanto, fui caça e caçadora – uma presa fácil.
No final do primeiro semestre participei das reuniões com os pais. Trazer fragmentos
dessas reuniões só faz sentido para retomar o caso da aluna Saionara, na medida em que
suas linhas traçadas nos espaçostempos escolares, não fizeram nenhuma concessão aos
significados existentes. Assim que terminou a reunião, aproximei-me de sua mãe para
conversarmos um pouco sobre o que ela havia dito. Essa idéia ocorreu-me durante sua
fala ao relatar que Saionara vinha manifestando desinteresse pela “creche”, dizendo que
a professora passa um “dever” que ela não sabe fazer, referindo-se a uma lição do Pica-
Pau. Em nossa conversa, disse-me que sua “filha é muito inteligente e educada”;
“Saionara adora ficá pegada nos caderno velho e nos livro usado”. Quase todas as
tardes ela vai para a casa das primas mais velhas para brincar de estudar. Segundo a
mãe, ela tem aprendido muito, e adora escrever o nome dos irmãos, que são cinco, o
nome do pai, da mãe e o das primas. A mãe não entendeu muito bem o motivo pelo qual
Saionara vem se desinteressando pela “creche”, mas deixou “pra lá”, saiu e foi embora.
As linhas traçadas por Saionara são movidas por desejos que circulam noutros
espaçostempos mais livres, “[...] são opções políticas para problemas, entradas e
saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu
desejo” (DELEUZE, 1995, p. 22). Uma ação política está ligada a percepções; e não são
apenas percepções, elas envolvem encontros, relações e experimentações. A nova
possibilidade de Saionara foi encontrada com as primas, quando inventa novas relações
com o aprender, com o tempo, com o espaço... Com a ajuda de Deleuze, podemos dizer
que, ao problematizar um espaçotempo, supostamente homogêneo, como o de sua sala,
Saionara fez eclodir sua diferença, sua inexplicável diferença. Qualquer tentativa de
explicarmos a existência da diferença, ela partirá de uma forma já dada, já conhecida
sobre o outro.
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Sala de aula vazia – uma casa de pensamentos: fragmentos de uma memória...
“Tia, você sabe o que vai acontecer?”. Nunca sabemos de antemão o que vai acontecer.
Menos ainda quando fazemos uma coisa pela primeira vez. Esse era o meu caso, na
tentativa de construir um terrário em sala. Nenhum de nós compreendia o processo de
montagem de um terrário. Contrariando a segura evidência de uma explicação, marca
identitária de uma professora porta-voz da palavra salvadora para comunicar/explicar o
que iria acontecer com as minhocas e as plantas, estávamos todos do mesmo lado, ou
seja, estávamos do lado de uma aprendizagem.
A experiência não pressupõe leis mecânicas entre as coisas – aprende-se na sala de aula
e brinca-se no pátio, nem comunicações voluntárias; tudo é implicado, complicado, tudo
é signo. O aprendiz é aquele que se expõe, que se afeta. Segundo Deleuze (2003), é o
egiptólogo, aquele que interpreta, traduz, decifra. Nessa perspectiva, a aprendizagem
não passa pela capacidade de explicar um objeto e apresentar domínio “sobre” ele –
domínio do conteúdo. Essa é a fórmula da representação, que tenta submeter toda
aprendizagem ao modelo da recognição. Ela consiste em buscar a resposta, ou seja, algo
definido antes da experiência.
Uma aprendizagem, diz Deleuze (2000), se dá de maneira indeterminada, involuntária,
em que o aprendiz, ao invés de se arrogar da posse do saber arquivado na memória, ele
é sensibilizado pelo signo ao ponto de permitir um envolvimento profundo com seu
objeto de encontro. Profundo não tem nada a ver com o que está escondido, muito pelo
contrário, o mais profundo é o intenso. Nesse sentido, não nos interessa saber ou não
saber o que é o terrário, mas sentir e pensar “com” as crianças o que se passa na
experimentação para chegarmos a uma resposta.
Tudo se passou sem que nenhuma palavra remetesse a nossa curiosidade a um objeto de
recognição, quero dizer, a uma definição prévia do que seria o terrário. O meu não
saber a respeito do processo de montagem deixou espaços vazios nos quais as crianças
puderam elaborar seus pensamentos. A ignorância da professora – quero dizer, o meu
desconhecimento – não foi recebida com estranheza pelas crianças. Experimentamos
juntos.
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A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de
compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da
concepção explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do
incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar
alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode
compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o
mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e
espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes,
inteligentes e bobos (RANCIÈRE, 2004, p. 23-24).
Dia após dia, fazíamos o registro daquilo que conseguíamos perceber: os mapas das
minhocas, o suor do vidro, o nascimento de mais minhocas, o brotinho da planta, as
raízes... “Não tem ar pra respirar, como é que eles não morreram, tia? Mas as
plantinhas não precisam de água pra viver? Como é que a água não secou? Se a gente
abrir o vidro, eles morrem? Pode colocar mais bicho aí dentro?”. Os familiares
também vinham curiosos: “É verdade que os bichos estão presos e não morreram,
como é que pode? Tia, eu queria ver o planeta terra que ela falou que vocês estão
fazendo aqui na sala”. A cada dia, novos problemas eram levantados pelas crianças. Na
verdade, não demos conta de pesquisar sobre todas as questões elaboradas pelas
crianças.
O mais importante de todo o processo foi exatamente a problematização, a exaltação
nervosa provocada pelo terrário. Mais importante do que o pensamento é o que dá que
pensar (DELEUZE, 2003). Mas o que nos força a pensar?
O signo. [Ele] é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência
de um encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato
de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a
única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio
pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o
pensamento, que o tira de seu natural estupor [...] (DELEUZE, 2003, p. 91).
Sala de aula vazia, uma casa de pensamentos. Tempo vazio em que as aprendizagens
ganham velocidade minando as formas e as organizações fechadas... Uma sala de aula
feita de diferentes mundos que funcionam junto com os organismos controladores: hora
do lanche, hora do recreio, hora do dever, hora da leitura, hora de ficar sentado. Sala
vazia em que os sentidos de uma vida são produzidos, espalhando-se, rizomaticamente.
O vazio e o esquecimento formam um meio indispensável ao aprendizado e ao
pensamento. “Os físicos dizem: os buracos não são ausências de partículas, mas
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partículas que andam mais rápido do que a luz” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.
46). A curiosidade atiçou a inteligência das crianças. Nesse exercício, ao invés de as
crianças assimilarem um conteúdo já dado, elas interpretaram/decifraram os signos que
o terrário lhes emitia. Elas se lançaram nessa atividade pensante colocando em jogo
tudo o que sabiam e o que não sabiam. A primeira coisa que faziam ao entrar em sala
era visitá-lo.
O vazio a que nos referimos está implicado numa noção de tempo em que os signos
pretendem valer pelo sentido construído/criado e não pelo sentido dado. Aí, o vazio é
preenchido. Torna-se pleno de forças, sentimentos, paixões, sofrimentos, entre outros.
Esse tempo implicado na interpretação de um signo são veios de criação, entrada para o
novo.
A arte não imita, mas isso acontece, primeiramente, porque ela repete, e
repete todas as repetições, conforme uma potência interior (a imitação é uma
cópia, mas a arte é simulacro, ela reverte a cópia em simulacros). Mesmo a
repetição mais mecânica, mais quotidiana, mais habitual, mais estereotipada
encontra o seu lugar na arte, estando sempre deslocada em relação a outras
repetições com a condição de que se saiba extrair dela uma diferença para
[estas outras] repetições. Isto porque não há outro problema estético a não ser
o da inserção da arte na vida quotidiana. Quanto mais a nossa vida quotidiana
aparece estandardizada, estereotipada, submetida a uma reprodução acelerada
de objetos de consumo, mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar [uma]
pequena diferença [...] (DELEUZE, 2000, p. 462).
Diante de tudo que foi vivido e sentido, arrisco em dizer que “pesquisar” o cotidiano da
Educação Infantil, a partir da experiência de nossos personagens mirins, é caminhar
para decifrar paradoxos, é perceber na repetição processos de criação. A despeito do
que é dito “sobre” o cotidiano como sendo um dia igual ao outro, queremos afirmar,
juntamente com Deleuze (2000), a partir do seu conceito de repetição, a capacidade de
criação das crianças e a potência que elas têm para transformar as relações com os
espaçostempos em que a vida escolar é tecida, diariamente...
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Referências
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. Rio Janeiro: Editora
34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto
Machado. Relógio D’agua, 2000. Capítulo III.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo esquizofrenia. São
Paulo: Editora 34, 1995. V. 1.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São
Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
FADIGAS, Nuno. Inverter a educação: de Gilles Deleuze à filosofia da educação.
Portugal: Porto Editora, 2003.
NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do
cotidiano. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação
intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004